I
Que coisa mais chata.
Novamente aquela criatura de asas transparentes a emitir aquele zumbido horrível rente aos meus ouvidos. E o pior nem é isso. O pior mesmo é apanhar com os reflexos de luz em cheio nos meus olhos, ainda não totalmente saciados de escuridão. Aquela fonte de luz, exponencialmente exacerbada, pelo bater eléctrico das suas asas, mantem o meu olhar cabisbaixo em posição de defesa. E o sol, que se esboça quente no céu, também não ajuda nada.
Concerteza que, quem teve a experiência de ter visto uma criatura destas, sabe que o que mais impressiona nem são as asas transparentes, ou as pernas espinhadas nos calcanhares, nem mesmo as duzentas antenas na cabeça. Relativamente a estas últimas nunca as contei, até porque mesmo que me dedicasse a essa tarefa ia ter muitas dificuldades, já que as antenas se movem aleatoriamente, sempre que ele fala ou se move...mas, acredito que se não são duzentas andam lá perto desse número. Como eu estava a dizer, o que mais choca ao observador, de tão bizarro ser, são os olhos. Os olhos de um philiphyar são enormes e parecem os olhos de uma mosca, o que lhe confere um aspecto um tanto ou quanto assustador...
Olho à minha volta e só vejo escuridão.
- O Sol não existe.
Penso enquanto ouço vozes...
- Beijo-te o coração através dos teus lábios.
Esta frase ecoa nos meus ouvidos, como se viesse do interior de uma gruta escura, e perde intensidade de som à medida que o ruído ritmado do meu despertador me puxa novamente para o meu quarto húmido, frio e desagradável. Sento-me na cama, abrindo os olhos o mais que posso, e mesmo assim não vejo nada. Os meus olhos estão de certeza mais claros e mais verdes porque sempre que a luz é pouca eles ficam assim. Será que ela alguma vez os veria assim...?
Está tanto frio e eu odeio tanto o frio. Os meus braços, nus dos lençóis, gelavam para que o meu corpo se habituasse ao frio matutino. Mas a temperatura gélida tinha um efeito contrário ao pretendido. Isto é, em vez de reagir, movendo-me energicamente para aquecer o corpo, permanecia imóvel como se estivesse a congelar, aos poucos e poucos, para a posteridade. Tal como um réptil inanimado pela carestia de calor.
- Nasci no país errado...
Penso em voz alta.
- Agora mesmo podia estar numa ilha tropical qualquer, sem turistas e com muito pouca gente.
Mas depois lembrei-me que já fiz isso e...e voltei! e nunca me esqueci do frio porque tinha esperanças de soprar, de exalar calor do meu coração e o aquecer e o fazer desaparecer...Sou demasiado lunático, é o que dizem.
Levito, voo e vejo nuvens de algodão que toco e espremo para soltar as pequenas claves de sol e as fugidias claves de estrelas cadentes. As primeiras flutuam e precipitam-se calma e levemente sobre campos de folhas de todas as cores, cobrindo a pouca nudez do solo fofo, enquanto as segundas mancham o céu de satisfação. As folhas coloridas libertam sons, que são acompanhados pelos sons dos instrumentos de cordas dos grilos, que acorreram para nos saudar. E o arco-iris também veio para nos cumprimentar. E os pássaros, que cantam com vozes doces com sabor a pêssegos maduros, voam em círculos.
- Já se informou acerca do que é que o Departamento de Logística realmente deseja do nosso Departamento?
Interessante como o nosso cérebro funciona. Se me tivessem perguntado, naquele exacto momento, se tinha ouvido o que me havia sido perguntado, responderia precipitadamente que não. No entanto, depois de recapitular esses sons, e de os trabalhar em memória residual, cheguei a algo parecido com o que foi dito. Pelo menos, a julgar pelo desenrolar do diálogo.
- Sim claro! Mas ficou combinado que eles nos enviariam um ficheiro com uma lista de issues em aberto...
Esperei ansiosamente que ele me deixasse depois desta resposta. Ele acenou em concordância, virou as costas e caminhou de forma lesta pelo corredor, até fechar a porta do seu escritório. Não era de muitas falas. Tentei imaginar por variadissimas vezes que tipo de família uma pessoa como esta teria. Mas também, a julgar pelo meu comportamento dentro e fora do local de trabalho, se calhar não deveria tentar concluir nada sobre ele. Muito provavelmente não deveria concluir nada sobre ninguém, até porque vivo comigo há tempo suficiente para me conhecer, e sei tão pouco.
Sento-me, agora, novamente em frente ao meu computador, a pensar nestas palavras, que acabei de escrever. Os ficheiros, dispostos em árvore, parecem querer saltar para fora do ecrã. Movem-se de pasta para pasta, dando novos contornos à copa da árvore de informação. Os meus dedos batem nas teclas de letras semi apagadas, trauteando sons monótonos. E eu admiro-me com as mutações visuais que presencio, sem sequer me aperceber que são o resultado do esforço dos meus dedos, que aparentam agir com vontade própria. E, lentamente, as formas bem definidas no ecrã dão lugar à massa disforme de imagens, que me ausentam a percepção concreta, que tinha no meu trabalho.
Piso um tapete magro, espreguiçado sobre um corredor quase tão magro, que se estende profundamente até ao diluir de cores e formas, que é dado pela escuridão.
Tudo o que me rodeia transborda um classicismo tenebroso. A medo, ouso caminhar e, à minha esquerda, vejo uma cadeira, nobremente encaixada neste cenário desconfortável. Pondero se alguma vez esta cadeira havia sido usada. Olho para o lado oposto, um passo mais à frente, e vejo o espelho, encaixado naquela parede sóbria, verde escura. Duvido se, alguma vez, este reteve de forma premeditada a imagem de alguém. Poderia um espelho perder faculdades por falta de prática? Poderia um espelho ser demitido do seu posto de trabalho e ter que, em desespero de causa, enviar curriculuns aos proprietários de outros imóveis, potenciais empregadores? Bem...este espelho teria concerteza a vida dificultada, porque a perda de experiência por anos de inércia forçada, iriam dificultar-lhe a tarefa de encontrar trabalho...
As portas fechadas, como que lacradas com o selo do tempo, alinham-se em fila, acoplando-se às paredes do corredor. Continuo a caminhar, duvidando da infíma possibilidade de existir algo por detrás destas portas, até que uma delas, entreaberta, transpira pequenos raios de luz tímida. Empurro-a. Entro. É uma sala cerceada da sua amplitude pelo aglomerado de móveis negros. Ao centro, um sofá barulhento, da mesma cor dos móveis, desperta-me a atenção. Não seria este demasiado estridente no meio de uma sinfonia de silêncios? Mais à frente, atrás da televisão apagada, uma escada subia em caracol. Seria algum dos subires destas escadas enceradas, que conduziam aos quartos, feito de forma descuidada?
Não ouço nenhuma voz, nenhum ruído. Abro uma das portas de madeira vidradas, do piso inferior, e vejo a cozinha. Estão ele, a mulher e uma filha, que aparenta ter a minha idade, a comerem em silêncio. As palavras são poupadas, como tudo o resto naquela casa...pelo menos foi essa a impressão com que fiquei. Será possível amar em silêncio? E se o é, quanto tempo dura? Viro as costas, por momentos, quando o barulho de uma porta, a fechar violentamente, me assusta.
Quando voltei a olhar em frente vi um ecrã e tinha acabado de receber um e-mail. É tarde...É tão tarde e não aproveitei bem o dia. Mas o que é realmente aproveitar bem o dia?
- Para mim aproveitar bem o dia passa por sair muito e estar com os amigos ...sempre com os amigos!
Respondeu a rapariga da Escola Secundária ao inquérito sobre comportamentos sociais entre jovens.
- Eu penso que o aproveitar de um dia passa necessariamente por ouvir uma boa música, ler um bom livro e sair para tomar um copo com um amigo, capaz de ter uma conversa estimulante.
Resposta dada pelo executivo de uma Multinacional a entrevista à Revista de Negócios da Região.
As respostas estão associadas a uma realidade anteriormente vivida. É como se seguíssemos um modelo comportamental pessoal e, atendendo às nossas próprias variáveis, que nos estimulam positivamente, e que nós pensamos conhecer, quisessemos que estas se repitam, porque temos a ideia de que, se já fomos felizes uma vez, iremos de certeza ser felizes de novo, basta que para isso tenhamos os mesmo estímulos. Modelos simples, vividos no momento e desassociados de um horizonte temporal que geram, em muitos casos, disfunções de cariz social até porque o ser humano é um ser em constante devir motivacional.
Acabo de ler estas palavras, num add-on qualquer, que teimosamente apela à continuada leitura de um site qualquer, enquanto me preparo para sair. Tiro os auscultadores das orelhas congestionadas com o esforço de tantas horas a ouvir música, e, mesmo assim, continuo a ouvir melodias, que jamais havia ouvido anteriormente, de instrumentos, cujos sons, me transportam o espírito para locais sem barreiras e sem limites, em que o infinito é o mestre empreendedor e construtor da realidade.
Apeteceu-me escrever aquela mesma música, que ainda transbordava nos meus ouvidos, mas não sabia e isso deprimiu-me.
Enganamo-nos a nós próprios mais vezes do que normal. Quando o primeiro engano é ocasionado de forma deliberada quase sempre e, por preguiça e comodismo, tendemos a aceitá-lo com o consentimento da novidade. A partir daí esse mesmo muta, libertando a carapaça do engano, e assume a armadura do ritual e do normal. E, então, ficamos confusos quando nos sentimos tristes e atribuimos a nossa insatisfação e desconforto a factos triviais, que teoricamente pouco nos afectariam. Por detrás da amargura hábil reside, tal parasita, o engano inicial.
Por outras palavras, a incapacidade de escrever música pouco contribuia para a angústia que sinto agora. Mas não sou suficientemente profundo e astuto para decifrar os sinais da tristeza, mesmo quando estes aparecem tatuados na nossa alma.
Levanto-me e caminho para a saída, olhando uma última vez para trás, enquanto empurro a porta.
A minha secretária, que eu havia deixado vazia de papéis, entretanto arrumados minuciosamente nas gavetas metálicas, e do meu laptop, que agora carrego aos ombros, suporta uma rapariga de pele azulada, de orelhas pontiagudas, sorriso amplo e de claves de sol, desenhadas nos braços finos e elegantes. Sentada acrobaticamente no tampo da mesa, ela ergue um pescoço firme de deusa romana, e os seus olhos enormes sorriem com os lábios, e os lábios sorriem com os cabelos louros, que dançam ao som de música, que ela emana com o seu simples respirar. Sou projectado em imagem até junto dela e vejo o meu corpo ainda a segurar a porta, enquanto os meus olhos começam a fitar os dela.
Observar os olhos desta divina criatura é como olhar através de um caleidoscópio e ver realidades passadas, presentes e futuras confusamente amalgamadas num conjunto de formas e cores. Com alguma concentração involuntária, consigo ver a imagem de uma menina linda, vestida de branco, com os cabelos pretos escorridos, cobertos de girassóis a dançar num prado vasto, verde em que os pássaros se aproximam para a cortejar e cantam, para que sejam alvo da sua atenção, mas ela é indiferente a tudo isso. Toco a relva, arranco alguns fios, cheiro-a e sinto-a nas mãos. É tudo tão real. Olho-a novamente, agora de perto. Sorrio. E, na continuidade do meu sorrir, o cabelo dela transforma-se em fogo e dos olhos saem chamas, e eu grito, não de medo, mas de desapontamento, enquanto ela me segura com as suas mãos frias nos meus ombros fragilizados com o sentimento.
Saio e desço as escadas, sem grande pressa. Os degraus parecem não ter fim. Desço, e não me lembro de alguma vez ter pisado tantos degraus para abandonar o local de trabalho. Enclausurado numa interminável descida, sentindo-me como os pequenos ratos domésticos, que giram dentro de rodas de plástico, começo a desesperar. E choro. E enquanto choro, penso no porquê, mas não tenho resposta. E esse complexo de ignorância, relativa à causa, faz-me chorar ainda mais. Fecho os olhos com força, para verter as lágrimas maiores que caem sonoramente no chão. Olho em volta, e vejo um caminho ladeado por muros altos, de blocos enormes de pedra no fim da escada. É um caminho, também ele, feito de pedra mas vestido aqui e ali por inúmeras ervas daninhas, que parecem dominar este espaço, sem grandes adversários, já que têm como aliado o tempo. Dou vários passos, até encontrar uma bifurcação. Opto pelo caminho, que segue pela esquerda, sem hesitar. Caminho durante alguns minutos, fazendo sempre opções rápidas...ora virando para a direita, ora para a esquerda, sem grandes paragens para reflectir. De repente, sem sequer ter chegado a nova bifurcação, páro e a minha testa franze e transforma-se em preocupação. Sinto-me tão arrependido de não ter planeado o caminho que iria seguir, antes de ter dado o primeiro passo. Olho para trás e desejo repetir tudo de novo, e evitar os erros que tinha cometido. Quero evitar os caminhos sem saída, que me fizeram perder tempo, e aqueles que me foram difíceis de transpor. Mas não há um labirinto sem pelo menos um minotauro, penso eu para me consolar.
Viro então à esquerda novamente e sento-me na paragem de autocarro. Levanto-me quando vejo o 107 aproximar-se.
O condutor é relativamente novo. Aparenta ter uns 23 ou 24 anos. Admira-me o facto de ele ter escamas dérmicas no pescoço e, de quando em vez, despejar água, que tem reservada debaixo do seu próprio assento em baldes, pela cabeça abaixo. Mas a temperatura tinha subido repentinamente e, por isso, apesar de um primeiro impulso para lhe perguntar o porquê, dou meia volta e sento-me, enquanto limpo a testa de uma lágrima de suor.
Ao meu lado, sentou-se um homem de idade avançada, armado com um sorriso sincero. Arma estranha para tão velho ser. Era como se os anos nunca tivessem passado por ele. Calculei que tivesse aprendido a conviver saudavelmente com o sofrimento e que, depois de tantos anos, já se tratavam por amigos. Pondero nestas palavras e o meu queixo pendula em negação em desagrado comigo mesmo. Porque razão teria este homem sofrido? Provavelmente nos anos todos em que já viveu, nunca passou maus momentos ou, se os passou, soube minimizá-los sabiamente. Enquanto pensava nisso, decidi voltar a olhar de novo para ele e contar o número de rugas na sua face porque esse mapa possivelmente me localizaria melhor no tipo de informação que procurava. Mas o que vi foi uma carapaça gigante. Como é possível não ter visto isso anteriormente? Era uma carapaça que lhe cobria as costas. Tinha umas quantas patas articuladas finas e peludas, que abanavam freneticamente, e um ventre, não tão robusto como a carapaça, mas mais do que qualquer barriga humana. Mesmo assim, continuava a sorrir e comentava sobre o calor e sobre o desconforto que lhe era estar sentado, já que os assentos de plástico faziam com que qualquer travagem ou aceleração do autocarro fossem uma armadilha, porque, de facto, a carapaça dele escorregava com grande facilidade. Pensei nisso e no facto das pessoas demonstrarem tão pouco civismo ao rasgarem a parte do estofo que cobre os assentos de plástico e, para não parecer tão surpreso com a sua forma execrável, li-lhe estes pensamentos em voz alta. Dirigiu-me palavras de concordância enquanto esmigalhava uma pequena mosca e a mastigava lambendo as patas peludas, para que não houvesse nenhum desperdício da iguaria que levava à boca. Carrego no botão de stop e saio, fingindo conhecer perfeitamente aquela paragem, acenando-lhe um sorriso pouco sincero,enquanto desço as escadas do autocarro.
O ar fresco, menos saturado daquele casulo ambulante, faz-me sentir melhor. Caminho alguns metros, tentando não me afastar de um perímetro curto centrado na paragem, em busca de uma entrada de metropolitano. Vejo um indivíduo, que tinha tido a mesma ideia, e já se preparava para descer as escadas, que o conduziriam ao transporte subterrâneo. É um indivíduo muito alto e magro, de gabardina preta e óculos escuros, que lhe tapam completamente os olhos. Sigo-o, improvisando uma perseguição secreta. Represento, por breves momentos, o papel de um agente especial, zeloso da lei e, eventualmente, responsável pela salvação de toda a raça humana. E, o tipo, que continua a descer as escadas largas, acaba de ser incumbido de representar o papel do vilão, que atenta contra a espécie humana. Mesmo que ele não o sabia. Contudo, a forma como o indíviduo marcha rumo ao seu destino ajuda-me a idealizar o seu papel na perfeição. parece que nasceu para assumir este papel. Caminha lesto, meio desconfiado, olhando de soslaia para os lados, meio a medo, provavelmente revirando os olhos o mais que possa, para visualizar algum movimento na sua retaguarda. E continua, rápido, atento aos sons de passos que o possam seguir, pisando os degraus como se ambos os seus pés lhe doessem e tivesse que pisar os degraus com a suavidade de quem evita males maiores. Mas faz isso tudo sempre sem hesitar, mesmo que os degraus, aos poucos e poucos, assumem a escuridão do ar. Mesmo quando a humidade do mesmo ar escuro se reflicta no seu respirar arfante.
Mais lá ao fundo, depois de ter descido muitos dos degraus, e depois de ter deixado de ouvir o eco dos seus passos, vejo o seu semblante a preto e branco. Vejo a sua imagem estagnada dentro de uma moldura sombria. Uma imagem fotográfica de alguém que parece hesitar. Congelada tal como um pause de um qualquer filme de Hitchcock. Páro também. Observo, à espera do play. Atento ao que o fez parar. O ruído cada vez mais baço e apagado dos seus passos cessou definitivamente. Esse ritmo deu lugar a outro. Ouço agora um bater forte, como que de um ribombar de um tambor grave, de ritmo monótono e homógeneo, de alguém cansado, que não ousa experimentar novos ritmos. Os meus sentidos, despertos conforme o local o permite, parecem querer transmitir-me mais e mais informação. Encosto-me à parede e sinto uma viscosidade que me repudia. Olho na sua direcção e vejo que as paredes estão forradas de uma cor vermelha muito escura.
Este cenário assusta-me e, por momentos, suspendo a atenção com que seguia o suspeito. Decido voltar para trás, sem antes dirigir um último olhar para o local onde ele se encontrava. Este corre em minha direcção. O perseguidor é agora o perseguido. Mais assustado, por não saber do que fazia este vilão correr na minha direcção, do que por ele próprio, acelero o ritmo.
O meu receio refreia a minha velocidade, paralisando a força das minhas pernas, e facilmente vou perdendo distância. Olho para trás continuamente e, cada vez que o faço, este está mais e mais próximo. O meu coração bate mais forte do que o ritmo ruidoso que enche o corredor. Olho novamente para trás.
Ele olha-me com olhos de pânico. Parece querer gritar algo. Talvez socorro, talvez um último desejo, talvez...
As paredes contorcem-se. Palpitam. Sacodem o interior. Ele escorrega em algo viscoso, que aparenta ser saliva abundante, e cai. A luz, por detrás de mim, que aumenta cada vez mais, apela à minha salvação. Ele estica o braço, abre a mão e implora por ajuda, com os olhos. Eu hesito...
Algo surge com uma velocidade assolapada e com um sibilar que sacode todos os outros barulhos, que continuam presentes. Algo que poderia ser o metropolitano...mas não. Este vem na forma de uma língua enorme. Eu corro direito à luz. Ele não ousa combater com o seu designio. Sinto-me projectado para o exterior. Olho para trás, ainda com a dor dos olhos de escuridão. O sujeito tinha acabado de ser engolido por um peixe enorme que, ao fechar a boca, me permitiu avistar dois olhos enormes e assustados e dois chifres, que tinha encaixados perpendicularmente à linha dos olhos.
....
Abro os olhos ainda a pensar no velho, que tinha visto há pouco, enquanto me preparava para entrar no metro, que tinha acabado de parar à minha frente, e cujo barulho dos travões me havia chamado novamente à realidade. Ao entrar, dei passagem a um sujeito muito alto e magro de gabardina preta e óculos escuros que lhe tapavam completamente os olhos. Mantive-me em pé como geralmente faço quando viajo de metro. De facto, acho que é por pensar que sendo viagens tão rápidas não compensaria perder tempo em me sentar e em habituar o meu corpo à ideia de descanso para novamente perder essa noção alguns minutos depois. Pensava nisso e veio-me à cabeça a analogia relativa aos sem abrigo na época natalícia. Habituam-se por breves momentos a terem condições de vida condignas, para logo de seguida lhes ser privado esse bem estar de forma brusca, como o é brusca a saída repentina de um metro quando este pára numa estação.
Fui interrompido no meu raciocínio pelos guinchos estridentes, que o metro expelia, enquanto curvava. Era como um animal em sofrimento, em dor agonizante a suplicar que o abatessem. Os sons têm a capacidade de me transmitir certas sensações, que as próprias imagens, por mais explícitas que aparentem, carecem de o fazer. Quando ouço determinados ruídos em decibeís elevados assusto-me com relativa facilidade e não é raro reagir começando a correr que nem um louco sem destino definido. Contudo, com as imagens as coisas são muito diferentes. Pus-me a imaginar como seria a minha reacção face a um monstro mudo. Provavelmente nem reagiria. Essa imagem absurda fez-me rir. Hoje ri-me pela primeira vez. E ri-me de novo e o indivíduo, único ocupante da carruagem, para além de mim, olhou suspeitosamente na minha direcção.
A cadência de sons era como um contar de uma estória a quem a pudesse decifrar. O animal mecânico, de vários compartimentos, movia-se em diálogo com os ouvintes desatentos, que ocupavam as suas entranhas. Cantarolei uns sons como que para estabelecer diálogo com a besta, esquecendo-me por breves momentos da outra personagem...o espião. Este levantou-se, cruzou-se comigo e com o abrir das portas, numa das paragens, deixou cair um embrulho ao embater comigo, encenando um repentino desequilíbrio, e saiu com a pressa com que entrou. Num breve segundo, hesitei entre correr atrás dele, para lhe devolver o embrulho, fingir que nem o tinha visto e deixá-lo para outro o apanhar, ou apanhá-lo e ver o seu conteúdo, já que me parecia óbvio ter sido esse o objectivo por parte do suspeito. Entre apanhar o objecto, olhar fixamente para aquele embrulho, feito de veludo verde escuro, ostentanto um laço de corda dourada com nós de marinheiro, e voltar a olhar lá para fora, passou tempo suficiente para ler em letras poeirentas o nome da paragem que procurava.
Acelerei o passo, rumo à casa que agora me parecia tão hospitaleira, por entre ruas sujas de vida. Coloquei as chaves dentro do vaso Maia, e comecei a abrir o embrulho, impacientemente mas sempre devagar, por não fazer ideia do que ia encontrar, enquanto me sentava no sofá velho e escuro, no canto pensante da casa.
Esta impaciência teve exactamente a mesma intensidade do que aquela que eu sentia quando, em criança, recebia um embrulho cujo conteúdo desconhecia.