III
Acordei com a cabeça húmida e com uma enorme dor de cabeça. Vi o sol lá em cima, ou a lua...ou o mesmo buraco de luz, vinda do cume do nada. Movi-me aos poucos, e a custo, passei a mão pela cabeça, ao de leve, e saboreei o meu próprio sangue, o que me fez sentir tonto.
Depois de alguns minutos, a tentar recuperar forças, ergui-me a custo, suportando o meu corpo, que me parecia mais pesado, com ambos os braços, sujando as mãos de terra húmida. Já sentado, comecei a ouvir a mesma voz, que me intrigou há pouco. Induzido pela curiosidade, continuei no difícil processo de me erguer. Já em pé, aproximei-me novamente do buraco de luz.
Lá fora, o velho repetia as mesmas palavras que havia ouvido há pouco...as mesmas pausas...a mesma expressão e entoação...como se eu tivesse retrocedido ao período em que havia desfalecido pela queda...até os gestos eram réplicas do que havia visto...tudo era igual, como um estranho e continuado dejà vu.
Atento, atónito escutei e esperei mais informação da parte do velho. Informação que não vinha. Era como que um livro cuja história estava a ser vivida naquele momento, mas cuja continuação não havia sido escrita. A página não virava, e eu começava a demonstrar alguma ansiedade, face ao que estava para vir...mas não vinha! E, passados alguns minutos de ter visto exactamente o que havia visto anteriormente, comecei a aperceber-me que estava a presenciar um loop...será que estava a viver mais apressadamente do que o ritmo do escritor divino que me havia criado? Tal era a vontade de viver apressadamente que me antecipei num presente ao meu próprio futuro? Será que era meu desejo escrever o guião da minha própria vida e da vida de outros, que poderiam nem sequer existir como personagens reais?
Parecia-me cada vez mais óbvio que tinha que intervir de qualquer forma para que aquela história tivesse um desenlace...um final. Mas seria assim tão importante que houvesse um final para esta história?
‘Para mim, o final de uma narrativa é crucial para cativar o público e tornar lógica a sequência de raciocíneo, de quem acompanha essa mesma narrativa desde o seu início...Parece-me óbvio que, quem começa a acompanhar uma narrativa, gosta de chegar a um ponto em que o resultado é produto do desenvolvimento narrativo...é como uma realização objectivada com um final.’ – Li na capa de um romance de um escritor sul americano.
‘...Nada precisa de ter princípio ou fim...o conteúdo ultrapassa essas barreiras pela qualidade da construção das personagens, dos cenários, das descrições e, acima de tudo, da mensagem que se quer transmitir...até porque a mensagem pode implicar um infinito casual...e, nesse caso, não se enquadram os eternos limites de final de história...é tudo uma questão de intenções e da forma como elas se realizam...’
– O professor de literatura na Universidade de Letras esbracejava, para se fazer entendido, enquanto pronunciava estas palavras.
Esta era uma personagem extraordinariamente curiosa. Uma farta branca que lhe dava uma forma alegre à face de pele sadia e pouco maltratada pelos anos longos de vida, uns olhos cor de água, daqueles mares, daquelas praias que todos sonhamos conhecer, roupa bem informal, aliás em conformidade com a forma como este sempre abordava os seus colegas (mesmo aqueles que ainda não tinha tido o prazer de conhecer), barriga pronunciada com algum arrojo e olhar desconfiado mas, curiosamente, acolhedor.
Entre as pequenas paragens que fazia, para explicar a sua ideia, olhava o jornalista olhos nos olhos com o objectivo de perscrutar e entender até que ponto estava a ser compreendido. Era como que uma insegurança que ele demonstrava face à sua própria qualidade no acto de ensinar, ou uma necessidade exacerbada de ser compreendido. Isso obrigava a que o jornalista se mantivesse em constante alerta. Esta entrevista, que tinha acompanhado atentamente há uns dias atrás, numa sessão de autógrafos deste mesmo professor, aquando do lançamento de mais um dos seus livros, tinha-me cativado o interesse...
Independentemente das forças ocultas em oposição que me distraiam o pensamento, deixei-me levar pela espontaneidade como geralmente faço e acedi à vontade que tinha em saciar a minha curiosidade. Afinal de contas, tudo me levava a concluir que este jogo tão real estava associado à minha evolução enquanto criança...a estórias contadas inacabadas. E ,assim, subi a custo para fazer parte da encenação...
Quando finalmente consegui perscrutar o que se passava do outro lado, foi-me apresentado um cenário cultivado de cores verdes abundantes e de imensas criaturas que pareciam receosas do velho que encontravam pela frente. As árvores, que compunham este cenário, eram enormes e fortes, e os seus ramos não eram exclusivos de nenhuma árvore, porque se tocavam, como se toda a floresta estivesse abraçada em uníssono. Indubitavelmente, estava a escrever a conclusão da velha história, que me havia sido contada anos atrás. O velho, desalentado com o insucesso na tentativa de explicação da sua presença, naquele espaço, àquela criaturas que, entretanto, se ausentavam de forma lesta por entre os obstáculos verdes que pintavam o cenário, direccionou o seu olhar para mim, quando um dos meus passos sobre um tapete de folhas se mostrou mais ruidoso.
‘Estava à tua espera...ainda bem que pudeste vir’ – falava de forma calma e sorridente enquanto eu ainda olhava para o tapete e tentava descobrir a causa do ruído que acabava de emitir...
As folhas que havia pisado pareciam ligadas entre si como se tivessem sido desenhadas e criadas por alguém com receio de perder a orgânica organizacional de um cenário por onde circulavam muitas criaturas com vontade própria. Estavam dispostas de uma forma que exprimiam uma estética muito espcial e, mais importante ainda, estavam distribuídas num espaço que parecia fulcral para o desenrolar da acção.
‘Não te queres sentar?’ – hesitou durante alguns segundos e, perante a minha perplexidade e falta de palavras, decidiu baixar-se lentamente e sentar-se, esperando que eu me acalmasse com a sua nova posição contagiante. - ‘Se não te importas eu vou-me sentando porque estou a ficar cansado’ – estas palavras sairam-lhe a custo porque ainda procurava o sitio mais confortável para se sentar.
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